segunda-feira, 5 de março de 2012

Saudade - A mulher por Veríssimo

Postado por Infinito Particular às 14:33
Foi difícil, quase impossível, escolher apenas um texto de Luís Fernando Veríssimo sobre mulher. Difícil mesmo! Tanto que sugiro que você jogue no Google “crônicas de Veríssimo” para entender do que eu estou falando. O mestre do cotidiano é também o mestre do universo feminino. Acabei ficando com “Saudade”, que foi uma das primeiras crônicas que li, e que revela toda a maestria do autor. Inspirado, é claro, pelas mulheres.

 Luís Fernando Veríssimo é conhecido por suas crônicas e textos de humor, mais precisamente de sátiras de costumes, publicados diariamente em vários jornais brasileiros. Verissimo é também cartunista e tradutor, além de roteirista de televisão, autor de teatro e romancista bissexto. E A NOTÍCIA BOA é que ele vai estar em BH amanhã, lançando seu livro "Em algum lugar do paraíso". A entrada é gratuita e os primeiros livros serão vendidos por R$5. #OMG!

 A ilha só não era ilha deserta de cartum porque em vez de uma palmeira tem várias. Mas no resto é igual. Os náufragos são dois. Dá pra ver o tempo que estão na ilha pelo comprimento das suas barbas, e as barbas batem no joelho. Estão falando sobre mulher.
     --Tem um ponto, acho que é aqui no pescoço - faz tanto tempo - em que todas cheiram igual.
     --Bobagem. Cada uma tem um cheiro diferente.
     --Não, não. Tenho certeza quase absoluta. É aqui, nesta dobra. Um cheiro, assim, doce. Todas.
     --E você cheirou todas?
     --Todas as que eu conheci tinham o mesmo cheiro aqui. Eu enchia as narinas, meu Deus. Eu...
     --Não vá começar a chorar outra vez. Você prometeu.
     --Sabe o que é que eu me lembro? O antebraço.
     --Onde é que ficava isso?
     --Aqui em cima. O antebraço é a coxa do braço. O braço era aqui embaixo.
     --Não é o contrário?
     --Não importa o nome. Aquela parte carnuda, em cima.
     --Já localizei. O que que tem?
     --É a parte da mulher que envelhece mais devagar.
     --Você está delirando.
     --É fato. Quando a mulher é nova, a carne ali é rija. Depois de uma certa idade ela perde a rigidez, mas não fica flácida logo. Fica, assim, cheia. Roliça.
     --História.
     --Até nas magras, aquela parte é carnuda. Nunca conheci uma magra que não tivesse, pelo menos ali, um montinho remissor. Alguma coisa onde se meter os dentes.
     --Lembra as magras de peito grande?
     --Lá vem você com peito.
     --Sempre fui um homem de peitos.
     --Está bem, está bem. Mas não generaliza. Pense naquela curva aqui, saindo da axila e inchando suavemente, suavemente... Dizem que não existem dois seios iguais no mundo.
     --Como que não? Pelo menos dois tem que haver.
     --Não há! Não é fantástico? O esquerdo é diferente do direito.
     --Vem com essa. Só porque cada um olha para um lado.
     --Não. São diferentes. Têm personalidades diferentes, tudo.
     --E eu tenho que agüentar...
     --Lembra nuca?
     --Nuca...
     --Quando elas puxavam o cabelo para cima, sempre sobravam uns fios na nuca.
     --Puxa, eu tinha me esquecido da nuca.
     --É onde a mulher tem o cabelo mais fino.
     --Não vem com teoria.
     --A curva do ombro. As costas quentes. Aquele ponto onde ainda não é a nádega mas já há uma elevação, um prenúncio...
     --A junção da nádega com a parte de trás da coxa...
     --Ah, aquela prega.
     --Não tinha prega nenhuma.
     --Como que não? Uma espécie de subnádega. Cansei de ver.
     --Nas suas, talvez. Que eu me lembre, terminava a nádega e começava a coxa, direto.
     --Por amor de Deus. E aqueles riscos que tinham embaixo da nádega, o que eram? Bigodes?
     --Nunca vi risco nenhum.
     --Porque você não prestou atenção. Só via peito.
     --Está bem, concedo a prega.
     --Agora, formidável era como a frente da coxa se projetava, lembra?
     --Mmmm.
     --A curva das coxas se salientava. Era uma curva longa, do quadril até o joelho. Um leve arco protuberante.
     --Dos joelhos, sempre preferi a parte de trás.
     --Os vãos. Exato.
     --Nas coxas, às vezes, você não via, mas olhando de perto notava uma leve penugem.
     --Tão leve que passando a mão, não se sentia.
     --Muitas raspavam as pernas.
     --Às vezes ficavam cortes. Pequenos cortes.
     --Isso. Criavam casca.
     --Só olhando bem de perto a gente via.
     --A pele macia e aquele cortezinho. Pobrezinhas.
     --A pele macia...
     --A perna atrás. Do vão dos joelhos até o tornozelo.
     --O tornozelo. Enrugadinho, mas lindo.
     --O dedinho do pé, sempre meio encurvado para dentro.
     --Todo aquele grande trecho do pescoço, da orelha até o ombro.
     --Orelha!
     --A boca.
     --Não fala.
     --O lábio inferior um pouquinho maior que o superior.
     --Os dentinhos, às vezes saltados. Mmmm.
     --A gente encostava a cabeça num seio e ouvia o coração.
     --Era morno. Tudo era morno.
     --Aquelas duas entrâncias na base das costas.
     --O umbigo...
     --Ah...
     --Você prometeu que não ia chorar mais.
     --Por que você foi falar no umbigo?

VERÍSSIMO, Luis Fernando. A velhinha de Taubaté. Porto Alegre: L&PM Editores, 1983.

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