segunda-feira, 14 de março de 2011

Óculos hitech

Postado por Infinito Particular às 08:44 0 comentários
*Inspirado nos textos do saudoso Moacyr Scilar, jornalista da Folha de São Paulo que escrevia textos ficcionais a partir de notícias reais

Óculos eletrônicos mudam de grau ao toque de um botão


Uma nova engenhoca pode substituir as lentes multifocais e bifocais: óculos eletrônicos, movidos a baterias recarregáveis. Nos óculos eletrônicos, as baterias transmitem uma corrente para mudar a orientação das moléculas no cristal, alterando a graduação das lentes.


O paciente liga ou desliga o modo para leitura quando precisar, apenas tocando na lateral da armação.

Retirado de

Acessado em 18 fev.



Quando surgiu o computador, José Castanheira foi taxativo: não vingava. A televisão, que era muito menos, já estava desse jeito, sem moral, só gente desocupada mostrando a cara sem mais nem menos, e mostrando outras coisas que ele nem se atrevia a comentar. E se nem a caixinha mágica, que fazia tudo sozinha, tinha serventia, que dirá uma máquina que você tem que ficar operando o tempo todo. Tinha certeza que o homem ia perceber que seu maior invento foi o rádio – isso sim era tecnologia. Não precisava de mais nada.

A internet passou quase despercebida por Castanheira, que não entendia a diferença entre ela e o computador. Mas ficou sabendo que agora dava para conversar com alguém do outro lado do mundo, e chegou à conclusão que não conhecia ninguém que tinha amigos do outro lado do mundo. Um para Castanheira, zero para seus filhos e netos que tentavam “trazê-lo para o século XXI”.

Quando foi a vez do celular, a teoria da inutilidade continuava fazendo todo o sentido para o nosso amigo, mas de certa forma o novo invento atingiu sua auto-estima. Onde é que esse mundo vai parar? – refletia Castanheira, enquanto se utilizava da tecnologia da fita cassete (exceção à sua aversão às modernidades) para assistir filmes de faroeste – “Filme dos bons tempos”.

Com indiferença ou com nostalgia declarada, José Castanheira foi passando por todas as invenções e últimas tecnologias de ponta, do Ipad ao microondas, sem se envolver com todo o frenesi que tornava até mesmo o seu vocabulário clichê. Um homem previsível num mundo imprevisível. “Graças a Deus”, pensava aliviado.

Mas um belo dia Castanheira voltou atônito da ótica que ia regularmente. Sem dizer uma palavra, não se sabia se ele estava pensando, ouvindo ou sequer sentindo alguma coisa. Estado de choque, foi a definição que deram os filhos. A caçula chorou. Os netos jogaram no Google os sintomas do avô e leram em voz alta as possíveis causas. Depois de um chá de camomila, colocaram Castanheira na cama e decidiram que se nada mudasse, o levariam ao médico no dia seguinte.

De manhã bem cedo, porém, a cama de Castanheira já estava vazia, e ninguém tinha notícia dele. Foi o desespero total. O radinho de pilha estava sobre o criado mudo, o banheiro cheirava a loção e o pente de mão que costumava arrumar simbolicamente a careca estava na pia. Papai fugiu, declararam os mais desesperados. Todos ainda tentavam manter a calma quando um neto se lembrou que no dia anterior Castanheira tinha ido à ótica para mudar o grau, como fazia há vários anos.

A atendente da ótica disse por telefone que estava mesmo preocupada com o cliente fiel, que tinha ficado chocado quando ela lhe ofereceu óculos eletrônicos, movidos à bateria recarregável. Chegou-se à conclusão que era demais para Castanheira, que provavelmente tinha decidido desistir da vida quando a tecnologia invadira o ponto sagrado e até então incólume do seu viver: os óculos. E bateria recarregável ainda por cima, era demais para aquele coração já fragilizado.

Depois de muito choro e especulações, chega uma notícia de Castanheira. Por email. Ele avisava um dos netos, “amigo do rapaz da lan house”, que ia passar no centro para comprar um celular, mas que não demorava e devia chegar antes do almoço. E acrescentava, no fim da mensagem “Ah Luiz, depois vc me segue no twitter. É @_castanheirabh. Abs, vovô.”
 

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